Os órfãos da Kiss
A tragédia de 27 de janeiro de 2013 deixou pelo menos 21 crianças e adolescentes sem o pai ou sem a mãe ou sem ambos.
Multicolorido, com super-heróis e princesas estampados em papéis de parede, em colchas, em bonecas e em carrinhos. É assim o universo infantil, cheio de fantasias e sonhos. Mas, para algumas crianças, a realidade acaba se mostrando bem diferente de um conto de fadas. O incêndio na boate Kiss, que deixou 242 mortos, mais de 600 feridos, pais e mães de vítimas dilacerados pela perda dos filhos, também atingiu em cheio crianças e adolescentes que tiveram arrancados do seu convívio o pai ou a mãe. Ou ambos.
Amigos, colegas de aula ou de trabalho, mas, principalmente, familiares das vítimas viveram, nos últimos três anos, mais ou menos intensamente, a ausência daquele que se foi. E encontraram formas de seguir em frente. Mas se é difícil para pais, mães e irmãos, como terá sido para os filhos das vítimas lidarem com o fato de que o principal cuidador não voltou para casa naquela madrugada de 27 de janeiro de 2013? Pelo menos 21 crianças perderam ou o pai ou a mãe ou ambos no incêndio da Kiss. Eles buscaram apoio nos familiares que ficaram.
De uma hora para outra, avós voltaram a ser pais. Em alguns casos, o genitor sobrevivente teve de assumir uma responsabilidade que, antes, não tinha ou era dividida. Esse processo, de quem iria cuidar dos pequenos, não foi fácil para nenhuma família. Na maioria, houve discordâncias, e muitos dos casos estão sendo decididos na Justiça. O número de processos não foi revelado pelas duas Varas da Família de Santa Maria. Os casos seguem em segredo de Justiça.No meio de tudo isso, crianças que, à época da tragédia, tinham entre sete meses e 14 anos. E como foram para eles esses últimos três anos? Como eles lidaram com o luto? E como vivem atualmente?
O “Diário” localizou as famílias de 10 dessas crianças. Em um dos casos, um menino de seis anos, à época da tragédia, perdeu o pai e a mãe no incêndio. Ele vive com os avós maternos, que viajaram em férias e não foram encontrados. Quatro famílias aceitaram falar com a reportagem, mas, em apenas dois casos, os titulares da guarda das crianças autorizaram a divulgação dos nomes. As histórias você acompanha abaixo.
Foi na jovialidade da tia, Camila, 19 anos, e na segurança transmitida pelos avós Iracema e Vlademir Vargas, ambos de 54, que as primas Eduarda, 7, e Jenifer, 9, encontraram o apoio que precisaram para enfrentar a perda das mães. As irmãs Cecília e Francielle estavam juntas na Kiss e não sobreviveram à tragédia. Eduarda ficou sem a mãe, Cecília, e Jenifer, sem Francielle.Depois do incêndio, as meninas passaram a morar com os avós em uma pequena casa de madeira no balneário Parque Pinhal na mesma cidade. Com doações, a família conseguiu construir uma casa nova, de alvenaria, onde moram atualmente.
– Depois do que aconteceu, foi um período de muito sofrimento. Mas, não adianta esconder ou mentir. O melhor foi contar. Nos surpreendeu demais a reação delas. Foi normal. No colégio, também. Nunca tiveram problemas de convivência. E sempre que tiver uma atividade que necessite da nossa presença (na escola), a gente vai – disse o avô.
A família manteve a rotina das meninas. A tia, Camila, já era quem cuidava delas enquanto as mães trabalhavam. Isso não mudou. Os aniversários das mães continuam sendo lembrados. E a família conversa sobre elas com as meninas.
No início deste mês, quando receberam a reportagem, as meninas trocavam frases entre elas e com Camila, demonstrando a cumplicidade característica da infância. A timidez em frente à câmera desaparecia no exato momento em que as primas ficavam sozinhas. Por um instante, Eduarda, a caçula da família, contou como lembra da mãe, Cecília:
– Ela tinha cabelo preto, era alta, gostava de se pintar e de se arrumar.
Os avós sabem o quanto é importante manter as mães vivas na memória das filhas e seguir o que elas desejavam para as pequenas.
– A gente quer encaminhar para que sejam umas moças como foram nossas filhas. Educadas, respeitadas e amadas. É prioridade nossa que se formem em uma faculdade. As mães delas cobrariam a mesma coisa delas. Somos os avós, não somos as mães. Mas damos o apoio que precisam. Elas vão crescer e vão buscar o futuro delas. Mas sempre terão para onde voltar – disse Vlademir.
O quarto que um dia foi da mãe agora espera pela filha. No ambiente, objetos de uma e da outra se misturam. O perfume que Andressa Ferreira Flores mais gostava e os brinquedos que ela comprou para a filha antes de morrer. Na parede, fotos das duas eternizam momentos do pouco tempo que tiveram juntas. Foram dois anos que jamais serão esquecidos.
Atualmente, a pequena de cinco anos mora com o pai em Aracaju, no nordeste brasileiro. A avó Claúdia Flores, 50, vê a menina de duas a três vezes por ano. Os 3,4 mil quilômetros que as separam são uma distância difícil de aguentar para quem não havia se afastado da neta nos primeiros dois anos de vida dela.
– Ela é uma criança sofrida. Ela tem amiguinhos imaginários, então, não sabemos até onde ela está abalada psicologicamente.
Ao longo do tempo, a avó foi comprando roupas, calçados e brinquedos para a neta. Está tudo no quarto dela, na casa onde Claúdia mora com o filho, que também tem cinco anos. Avó e neta viveram momentos difíceis logo após o incêndio.
– Quando cheguei do cemitério, peguei-a no colo. Ela deitou a cabecinha (no ombro), só me olhou, e a gente chorou juntas. Ela não falou mais nada. Ela acordava à noite chorando, e eu a abraçava, e não falávamos nada. Mas ela entendeu que a mãe não ia mais voltar – relatou a avó, emocionada.
Segundo a avó, a menina não entende por que a mãe não pode voltar.
– Ela me disse: vó, eu vi um filme em que um menino voltou do céu. Por que minha mãe não pode voltar também? Ela questiona muito a morte da mãe, porque ela não entende. Não tem como entender. É uma criança.
Passados três anos da tragédia, mesmo tendo apenas cinco anos de vida, a pequena já sabe o que aconteceu.
– Hoje ela já sabe tudo. Sabe do incêndio na Kiss. Pediu para contar como foi. Eu disse: a vó guardou tudo, quando tu crescer, tu vai ver, ler. Nessas horas, ela diz: eu queria estar com a minha mãe lá. Eu quero ela bem, porque ela perdeu a mãe e isso, para uma criança, acho que é perder toda a estrutura e amparo que ela
Perder a mãe com seis anos de idade não tirou de Julia o olhar angelical e o jeito tímido e doce característicos de criança. Mas, trouxe dor e revolta ao irmão Vinícius que, à época da tragédia, tinha 13.
Hoje, com nove, Julia mora com os avós maternos na casa onde sempre viveu. Vinícius, com a tia paterna, que também é sua madrinha.
Letícia, mãe do casal, veio morar com os pais quando ainda estava grávida da caçula. A avó Erci, 62, cuidou de Julia desde antes de a pequena nascer.
– Ela sempre foi muito ligada a mim. A gente contou para ela que tinha acontecido uma tragédia. Ela chorou. Mas ela me dava força. Eu pensava: não é possível. Imagina perder a mãe... e, às vezes, eu não me continha, começava a chorar, e ela dizia: “Força, vó. Não chora. Estou aqui.” Ela foi um anjo. É incrível.
Julia recebeu atendimento psicológico, mas nunca demonstrou nenhum comportamento diferente em função da morte da mãe. Já Vinícius, pediu para ir morar com o pai, assim que Letícia morreu. O pai tinha um tumor cerebral e morreu em agosto do ano passado. Atualmente, ele mora com a tia paterna.
– Ele se fechou muito. Nunca quis ir ao cemitério. Não quis conversar com um psicólogo – conta o avô materno, Renato Vasconcellos, 66 anos.
Na escola, todos deram atenção a Julia, porque sabiam que ela tinha perdido a mãe na tragédia. Segundo a avó, a equipe da escola teve muito cuidado após o incêndio. Quatro meses depois, veio o primeiro Dia das Mães sem Letícia. Julia foi poupada. Ela não participou dos ensaios para a homenagem que ocorreria naquele dia. Como os demais alunos, Julia fez um presente e quem recebeu foi a tia, Vanessa, irmã de Letícia.
– Esses tempos, ela estava triste e disse que era de saudade da mãe. Falei para ela: “Pode chorar. A vó também chora quando tem vontade. Isso é normal.” Digo para ela que a mãe está bem porque morreu salvando. Era uma pessoa boa – disse a avó, referindo ao fato de Letícia ter conseguido sair e ter retornado à boate para salvar vítimas.
A menina, hoje com 4 anos, era um bebê de um ano e três meses quando a mãe dela, Leandra Fernandes Toniolo, morreu no incêndio da Kiss, aos 23 anos.
Leandra foi criada pelo pai, Ildo Toniolo, e pela avó paterna. Foi na casa de Toniolo que Leandra passou o período da gravidez e era com ele que a filha e a neta moravam, em Santa Maria, até o dia 27 de janeiro de 2013.
– Ela é extramente parecida com a mãe. É ativa como a mãe. Herdou grande parte da Leandra – atesta o avô materno.
Na madrugada da tragédia, a bebê estava com os avós paternos no litoral de Santa Catarina. Como uma repetição da história da mãe, seriam o pai e os avós paternos que passariam a cuidar da criança após o incêndio. O pai da pequena estuda fora do país, e ela mora com os avós em Santa Maria.
Sempre que possível, a menina convive com o avô materno, que recebeu o “Diário” em sua casa, no último dia 11.
Assim como naquele janeiro de 2013, neste mês, a menina foi com os avós paternos para a praia. Pelo telefone, eles disseram que não queriam falar sobre o assunto.
Segundo o vovô Tono, como a neta chama Toniolo, logo após a tragédia, a menina começou a ser preparada para receber a notícia de que a mãe não voltaria ao seu convívio.
Diferentemente de casas de outros pais de vítimas, no lar de Toniolo, não há quadros ou fotos da filha espalhados pelas paredes e estantes. Segundo ele, é para poupar a neta de reviver a saudade da mãe a cada visita.
– Para ela, a mãe é uma estrelinha que foi para o céu. Mas, ela não tem consciência do porquê. Em uma ocasião, ela me perguntou: por que minha mãe virou estrelinha? Não sabia o que dizer. Temos um acordo (entre os familiares) de contar (sobre como a mãe morreu) quando ela tiver uns 7 ou 8 anos – explicou Toniolo.
Enquanto esse momento não chega, os avós guardam reportagens sobre o incêndio que serão mostradas à menina no futuro.
– Ela está bem. Tem os avós que a adoram. Um dia, ela vai ter que saber a verdade, mas para gente falar é complicado. Espero que o dia que ela souber, receba de uma forma amena, que não seja dolorosa. Que a morte da mãe, da forma como ocorreu, não gere nela, e para nenhuma dessas crianças, nenhum trauma – diz Toniolo.
Muitas vezes é por meio do desenho, da massinha de modelar ou da brincadeira no pátio que as crianças que sofreram a perda de um familiar expressam o que sentem e pensam. A direfença é que, ao contrário dos adultos, elas não conseguem dar conta do luto sozinhas.
– A gente acha que a criança vai ter um luto muito diferente do adulto, mas ela também vai passar por momentos em que vai se sentir mais fragilizada, que vai lembrar da pessoa que perdeu. É importante que os adultos que estão ao redor dela consigam dar conta desse luto junto com ela – explica a psicóloga Manoela Fonseca Lüdtke.
Manoela atua no Acolhe Saúde, serviço criado para atender os sobreviventes e familiares de vítimas da tragédia. Ela assistiu a cinco casos de crianças que perderam os pais no incêndio na Kiss.
Segundo a profissional, que faz curso de Especialização em Problemas no Desenvolvimento na Infância e na Adolescência, quando os adultos não explicam as coisas para as crianças, elas tendem a fantasiar e criar histórias, por isso, é importante ser verdadeiro.
– A criança, muito cedo, se dá conta que não estamos aqui para sempre. E as crianças têm perguntas que nos deixam sem respostas. Então, ajudamos os familiares a encontrar essas respostas para ajudar as crianças.
As famílias que conversaram com o “Diário” trataram do assunto de formas diferentes. Aos menores de 4 anos, à época do incêndio, foi utilizado um elemento de associação para explicar a ausência da mãe.
– As crianças sabem que “virar uma estrelinha” significa que a pessoa morreu, que não vai mais estar ali. Ter as lembranças, falar do pai ou da mãe é que vai dar conta do luto delas – explica a psicóloga.
Para os maiores, os familiares contaram que as mães tinham morrido.De toda forma, a psicóloga defende que a família encontre um modo de falar sobre o assunto e de deixar claro para a criança que a pessoa que se foi não vai voltar.
– Às vezes, a gente subestima as crianças. Elas entendem do jeito delas, e temos de tentar explicar do jeito que elas vão entender. Precisamos respeitar o tempo da criança. Quando ela estiver preparada para falar, ela vai falar. Talvez ela entenda que a família não quer falar sobre isso, então, ela também não fala. E está bem. Ela vai seguir a vida, assim como o adulto vai seguir a vida também.
Fique atento aos sinais
- Num primeiro momento, os familiares, os amigos, a escola conseguem dar conta de ajudar a criança a lidar com a morte dos pais. Porém, é preciso estar atento para os sinais. Se passado um tempo, a criança começa a apresentar problemas que a família identifica que tenha relação com a morte do pai ou da mãe, é hora de procurar ajuda.
- Uma criança que já tenha tirado a fralda, por exemplo, pode voltar a fazer xixi à noite, ou uma criança que já tenha autonomia de brincar, dormir e se alimentar sozinha pode voltar a querer mais a presença do adulto, ter medo do escuro ou de dormir sozinha. Pode ficar mais sensível ou mais irritada. Isso pode aparecer por um período e parar ou pode durar mais tempo. Nesse caso, um psicólogo pode ajudar a identificar o que está acontecendo.
- A terapia com crianças inclui o uso do desenhos, tintas, argilas e brincadeiras, entre outras metodologias. Os materiais são oferecidos, e as crianças escolhem o que querem utilizar para se expressarem.
- Não há nada que indique que uma criança lida melhor com a morte do que um adolescente ou vice-versa. Mas, conforme Manoela, a adolescência por si já é uma fase difícil em que é preciso lidar com o fim da infância e a mudança do corpo de criança. A morte de um pai ou de uma mãe é um complicador nessa fase, mas as reações são individuais.